
Com licença, Mercúrio, vou roubar-te por instantes o bastão mágico que abre caminhos e ilumina conexões. É que estamos à porta de junho, mês em que Caxias do Sul celebra seus dois aniversários, como bem cabe a uma cidade geminiana, e convém revelar certos fios míticos de ligação entre tu, deus das estradas e das negociações, e ela, a antiga colônia cedo destacada pelo dinamismo.
Oh, maravilha, o cajado alado do deus romano também me faz voar! E do alto vejo o começo da Avenida Júlio de Castilhos em seu cruzamento com a BR-116. O busto de Getúlio Vargas parece espiar a cidade, no monumento que agradece ao então presidente pela inclusão de Caxias no traçado da rodovia federal que desde a década de 1940 liga o Brasil de ponta a ponta.
Chama-se herma esse tipo de busto sobre uma coluna, e refere-se a Hermes, a versão grega de Mercúrio. Nas encruzilhadas, os gregos erguiam hermas em louvor a Hermes, protetor de viajantes e negociantes. No entanto, a cabeça em bronze de Vargas, neste cruzar de rotas entre o local e o mais além, evoca melhor a ótima cabeça para os negócios do povo daqui.
Em seu projeto inicial, a BR-116 não aria por Caxias do Sul por conta do relevo muito acidentado dessa parte da Serra. Ah, mas pensa você que uma cidade regida por Mercúrio iria deixar por isso mesmo? Comerciantes e empresários se apressaram em articulações pelo bem dos transportes e do escoamento da crescente produção local. E levaram a melhor.
Décadas antes, já tinham sido vitoriosos na mesma questão, quando a estrada de ferro varou as encostas serranas e veio dar em progresso por aqui. Por sinal, no mesmo dia da inauguração da ferrovia, a Pérola das Colônias foi elevada a cidade, em 1º de junho de 1910. Foi quando Caxias se tornou duplamente geminiana, visto que já se emancipara a município em 20 de junho de 1890.
A ferrovia foi fundamental também no processo de aculturação desse núcleo urbano formado por imigrantes italianos. Escreve Thales de Azevedo: “São negociantes os agentes principais da integração recíproca, abrasileirando-se crescentemente os italianos para melhor se comunicarem com os seus fregueses e correspondentes dos grandes centros”.
Se comunicar tem relação com negociar, faz sentido terem vindo de Mercúrio palavras como mercadoria, mercado e comércio — veja o “merc” embutido. Nomear é processo mercurial que se notabiliza em Gêmeos, signo regido pelo planeta Mercúrio.
Caxias até precisou disputar seu nome com outra Caxias, do Maranhão, após um decreto federal de 1938 proibir municípios homônimos. Desta vez, a cidade serrana não levou, embora tenha tentado, alegando a força econômica. A Caxias nordestina era muito mais antiga, tanto que o militar Caxias, que emprestara seu nome à colônia gaúcha, tinha se tornado Barão de Caxias — antes de virar Duque — por sua atuação vitoriosa em conflito na cidade maranhense.
E veja só, o busto do Duque de Caxias na praça central de Caxias do Sul foi roubado numa madrugada de 2021. A ironia mítica: de tão astuto, Mercúrio, na antiguidade, também era o deus dos ladrões.