
"O historiador é um profeta do ado, que de vez em quando erra". Essa é uma das maneiras que Luiz Antônio Simas define seu ofício, mas que também o definem no bom humor e na malandragem deste bom carioca que se equilibra, como bom sambista que é, entre a erudição e a sabedoria popular.
Nesta quinta-feira, o escritor, historiador e compositor estará em Caxias do Sul para ministrar a palestra "A História Social do Samba", às 20h, no Clube Gaúcho (Rua São José, 2195, Centro). A atividade integra o Circuito Sesc de Literatura e é gratuita, mas é preciso fazer a retirada antecipada do ingresso no Sesc Caxias do Sul. A seguir, confira a entrevista que Simas concedeu, por telefone, ao Pioneiro.
Pioneiro: Qual o ponto de partida para abordar a história social do samba?
Luiz Antônio Simas: Primeiro é mostrar que o samba não é apenas um ritmo ou uma coreografia, mas vai muito além disso, O samba é um construtor de sociabilidade importantíssimo, porque em torno dele circulam maneiras de como as pessoas convivem, como elas se vestem, comem, bebem. É preciso tentar entender o samba como cultura. O segundo ponto é quebrar a ideia muito presente no senso comum de que o samba é um gênero da música afro-brasileira que circula entre o Rio de Janeiro e a Bahia, mostrando que se trata de um fenômeno nacional muito plural, que adquire e dialoga com referências regionais muito fortes. Você encontra movimentos relacionados ao samba no Pará, no Acre e no Rio Grande do Sul e percebe em todos os lugares uma capacidade de estabelecer diálogos com as circunstâncias em que ele está inserido.
Como o samba pode ser compreendido enquanto sistema de organização da vida?
Num país fundado por uma lógica colonial que é excludente - e o Brasil não pode fugir dessa realidade - o samba organizou o mundo daqueles que a rigor foram excluídos por esse processo de formação do país. Ele construiu laços de proteção social, redes de sociabilidade, sentidos coletivos de estar no mundo. O samba, a rigor, te coloca no mundo. E isso é muito fundamental, sobretudo num país em que a música popular foi um caminho possível de reorganização da vida, e até de ascensão social, para um enorme contingente da população que foi excluído de canais mais institucionais de exercício da cidadania.
Isso envolve também um fator de construção identitária?
O Brasil tem dificuldades enormes para tentar construir consensos identitários. Porque, além de ser um país que viveu uma experiência de 400 anos de escravidão, é um país continental, que comporta diferenças muito grandes. Quando se pensa em identidade, se pensa em termos daquilo que nos iguala. No Brasil, acho que uma viabilidade para se pensar em identidade é entender como nós somos plurais. Como se construiu no nosso país uma cultura vasta, complexa e diversa em relação ao tamanho do país, mas com alguns elementos que estão presentes no país inteiro. E o samba me parece ser um destes elementos.
Que aspectos do samba produzido no Rio Grande do Sul chamam a tua atenção?
O Rio Grande do Sul tem uma multiplicidade de formação muito intensa. Quando a gente pensa nas charqueadas, há uma presença da cultura negro-africana que é muito mais forte do que o resto do país costuma perceber. E é uma presença diversa, porque a presença de africanos escravizados no Rio Grande do Sul é marcada por uma diversidade étnica muito interessante. Então, além de toda a questão da imigração e dos povos originários, também tem um impacto muito intenso da presença africana. E isso repercute de forma muito interessante também no samba, porque vai dialogar muito com o candombe uruguaio, com a estrutura da milonga, que traz toda uma musicalidade vinculada à presença negra. E, mais do que isso, outra característica é a presença de economias portuárias. O porto é fundamentalmente um lugar de circulação de culturas das mais diversas, sendo quase impossível pensar numa fixidez identitária quando se fala da presença de portos. O próprio Lupicínio Rodrigues falava que, de certa maneira, o samba dele foi moldado pelas referências que ele tinha da cultura do Rio Grande do Sul, especialmente as milongas que ele compunha _ e eu vejo presente nos sambas-canções dele uma melancolia milongueira _, mas ao mesmo tempo ter vivido numa região portuária, em Porto Alegre, que deu a ele um contato com um fluxo de gente que vinha dos mais diferentes lugares.
Você considera que o país conseguiu avançar nos últimos anos na compreensão da importância da brasilidade, especialmente dentro das políticas públicas?
Muito pouco, e esse é um debate que precisa ser feito. Existe um Brasil como projeto de estado-nação que, com exceções, na maior parte do tempo é pensado dentro da lógica vinculada ao processo de exclusão. São séculos de escravidão, de colonização e de colonialidade, que é aquilo que permanece do período colonial. E são perspectivas muito violentas de concentração de riqueza e de propriedade. Isso é um dado histórico que ninguém pode ser um alucinado de negar. Brasilidade, eu costumo dizer, é o campo em que você constrói elementos simbólicos que reorganizam e reinventam a vida nas brechas deste processo de exclusão. Há dentro disso as culturas festeiras, a diversidade de músicas, de danças, de comida, que tem um significado profundo. Porque nisso a pessoa constrói novos sentidos para a vida, referências coletivas que, a rigor, o processo histórico brasileiro tentou apagar o tempo inteiro.
Além disso, eu insisto na ideia de que é preciso promover o reencontro entre escolaridade e educação. Pois grande parte do Brasil foi educada fora da escola, uma vez que a escola esteve fechada pra ela. Então ela se educou na igreja, no terreiro, no campo de futebol, na brincadeira. E o país precisa discutir, dentro do sistema educacional mais formal, como levar em consideração o processo de formação do brasileiro. Eu, como historiador, tenho de trabalhar um mês de Revolução sa, e apenas 20 minutos a respeito da formação histórica do Rio Grande do Sul, por exemplo. E isso vale pro Brasil inteiro.
Como você vê o fenômeno do crescimento do Carnaval de rua? É algo que temos experimentado também aqui na Serra.
É um fenômeno muito interessante e muito contundente, que ocorre em várias partes do Brasil. A gente vive num mundo que individualiza cada vez mais as experiências de vida, muito submetido ao tempo do trabalho e da produtividade, os laços coletivos sendo dilacerados, fragmentados, e a gente está sendo engolido por isso. As relações estão se estabelecendo mais no campo virtual do que no real. Diante disso, a festa, mais particularmente o Carnaval, por tudo que ele significa no Brasil, é uma instância de construção de pertencimento a uma coletividade. Uma reconciliação com a ideia de que a vida é viável coletivamente. Ao longo dos tempos muitos teóricos estudaram festas, e eu acho que é um objeto de estudo a ser levado muito a sério, porque as festas oferecem possibilidades de reconstruir certos sentidos de vida e de cidade a partir da dinâmica do encontro. Quando a população pratica a rua ela pensa que rua ela quer ter, para além de mero lugar de circulação de pessoas e de mercadorias.