
“O povo tem força, precisa descobrir. Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui (...) Eu só quero é ser feliz. Feliz, feliz, feliz, feliz onde eu nasci. E poder me orgulhar...”
Nos versos do Rap da Felicidade, funk carioca com letra-chiclete, lançado em 1994, a dupla de MCs Cidinho & Doca trata sobre a sensação de pertencimento, além de escancarar a realidade muitas vezes violenta e dura, a ser enfrentada diariamente por moradores de regiões periféricas em todo o Brasil. Três décadas depois, essa mesma intenção de identificar sentimentos e demandas de moradores da periferia – não em versos – motivou um coletivo de jovens a elaborar, em Caxias do Sul, o Diagnóstico Territorial da Zona Norte, por meio de um questionário aplicado a mais de 700 famílias.
A pesquisa foi desenvolvida em 2023 em sete bairros da região. O mapeamento apontou hábitos culturais, traçou o perfil de 732 famílias ouvidas, relacionou trabalho e renda dos moradores, além de listar as principais demandas e os motivos pelos quais as pessoas vivem na Zona Norte. Para a psicóloga Kamila Bazzo, uma das coordenadoras da Fluência Casa Hip Hop, espaço que realizou o estudo, o material é um documento valioso principalmente para o poder público:
Essa amostra se tornou um instrumento rico para provocar e dar voz a algumas reivindicações que não são novas na comunidade. Existiam, só não eram expostas.
– Tínhamos percepções da região, mas sentíamos a necessidade de que fossem embasadas em dados reais. E essa amostra se tornou um instrumento rico para provocar e dar voz a algumas reivindicações que não são novas na comunidade. Existiam, só não eram expostas.
Um dos dados evidenciados no estudo destaca que o perfil predominante entre as entrevistadas, na Zona Norte, é mulher entre 25 e 54 anos, não branca, trabalhadora assalariada, com Ensino Médio completo, residindo com mais duas pessoas e que sustentam a casa sozinhas. Conforme o levantamento, quase 38% das famílias entrevistadas são chefiadas pela mãe, contra aproximadamente 16% chefiadas pelo pai. Um trabalho predominantemente feminino de cuidado e manutenção dentro de casa, não remunerado e quase sempre invisibilizado
— Estudos nacionais indicam que as mulheres gastam quase 10 horas a mais do que os homens, por semana, nos afazeres domésticos e cuidados com as pessoas. Nós temos um saldo muito grande aqui e, no Brasil, de mulheres que cuidam da casa. As nossas entrevistadas nos diziam “sim, eles me ajudam a lavar a louça, a varrer o chão”, como se fosse responsabilidade delas e alguém as ajudasse. Então, com base nas respostas que tivemos, não podemos afirmar que na Zona Norte as pessoas dividem os cuidados da casa — aponta a assistente social Maurem de Castilhos.
Em 25,82% dos lares, a responsabilidade financeira e de cuidado é dividida entre mãe e pai e no, restante, em menor proporção, o papel é desempenhado por avós, tios ou irmãos.
"As mulheres tomam a frente das famílias, mas não têm o e"

A história da psicóloga e educadora social Rosângela de Vargas, 39 anos, se mistura com a de outras mulheres da Zona Norte de Caxias e reflete o perfil predominante elencado na pesquisa. Moradora da região desde que nasceu e divorciada há sete anos, ela vive com o filho Lucas, nove anos, em um apartamento no loteamento Colina do Sol – e é a responsável pela casa. O menino convive e tem todo o apoio paterno, realidade nem sempre presente em regiões periféricas. Contudo, Rosângela também destaca que conta com a ajuda e o e de amigos e familiares sempre que precisa.
— Percebemos muito as mulheres tomando a frente das suas famílias e não tendo o e (de políticas sociais). O transporte, por exemplo, não é pensado para nós. Como uma mãe lá do bairro Pioneiro, por exemplo, vai ar o Cras Norte (Centro de Referência de Assistência Social, localizado no bairro Santa Fé)? Ela tem que pegar dois ônibus para ir e dois ônibus para voltar. É um custo grande para uma pessoa que, muitas vezes, tem mais do que um filho. São coisas simples que poderiam facilitar e muito para nós — opina a psicóloga.
Filha de uma faxineira e um metalúrgico, ela lembra episódios que ajudam a ilustrar como é ser moradora de uma região afastada do centro, cujos investimentos e a infraestrutura nem sempre atendem a necessidade da comunidade.
— Tudo é muito difícil e trabalhoso para nós que moramos na periferia. Quando eu estudava, nem sabia direito o que era faculdade. Eu queria ser psicóloga, mas na escola ninguém nunca nos explicou como era fazer faculdade, quanto custava. Nada. Quando cheguei para me matricular, me perguntaram quantas cadeiras eu queria pegar. Nem sabia o que era, “cadeira”, para mim, era a de sentar. Eu saía do centro e ia para a UCS a pé para economizar, R$ 1,75, e comprar pastel — relembra Rosângela, que conseguiu a aprovação no Enem após cinco tentativas e se formou em 2010, na FSG.
Com o olhar voltado à educação, ela diz que o Diagnóstico Territorial da Zona Norte foi como um estopim para melhorar a vida de quem vive na comunidade. Encorajada pela pesquisa, Rosângela já está se mobilizando da maneira que pode. Nas redes sociais, provocou alguns seguidores a opinarem sobre as principais demandas da região. Agora, com algumas respostas em mãos, pretende organizar conversas sobre assuntos como empreendedorismo e mercado de trabalho.
Nada impede que façamos algumas ações. Podemos fazer a coisa funcionar
– Não adianta esperarmos que venha das esferas públicas, porque não virá na proporção que esperamos. Nada impede que façamos algumas ações. Podemos fazer a coisa funcionar – prospecta.
"Criei vínculo, criei raiz"

A sensação de pertencimento e a valorização da comunidade onde vive nem sempre acompanharam a estudante Isadora Perim, 17 anos, moradora do loteamento Colina do Sol. Ela conta que, tempos atrás, sentia certa revolta por morar em uma região mais afastada do centro da cidade.
Depois que tu entende e se empodera, é inevitável criar um carinho, uma confiança e até ter uma causa para lutar.
— Agora, eu entendo o que é a Zona Norte, a potência dessa região e o que é a Zona Norte perante os olhos das outras pessoas. Depois que tu entende e se empodera, é inevitável criar um carinho, uma confiança e até ter uma causa para lutar. Hoje, sendo bem honesta, não me vejo morando em outro lugar, tenho bastante resistência em pensar em sair daqui para cursar uma faculdade federal. Eu criei vínculo, criei raiz. É a estrutura do meu osso eu morar na Zona Norte e pertencer a este lugar — destaca a jovem que divide a casa com a mãe, Raquel Galimberti.
A narrativa de Isadora sobre a comunidade que a criou não é por acaso. A jovem, que está no terceiro ano do Ensino Médio, acredita que a visão de mundo que tem hoje foi alimentada pelas experiências no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculo Santo Antônio e na Fluência Casa Hip Hop, onde participou de oficinas de desenho e grafite.
— Eu mudei muito depois que comecei a frequentar esses serviços, porque sempre fui quieta, introvertida e agora falo tranquilamente e até já ministrei oficinas. Mas não evolui só na comunicação; foi em tudo: vínculos, visão de mundo, entender o que eu gosto. Foi incrível, um caminho que se abriu — diz Isadora.
Revitalização de espaços de lazer e cultura
As falas de Rosângela e Isadora corroboram outra necessidade apontada pela pesquisa. Quando questionados sobre os desejos para seu bairro, 22% dos moradores optaram pela ampliação ou revitalização dos espaços de lazer e cultura. Além disso, 268 pessoas responderam que têm interesse em participar de oficinas de culinária e 178 de dança e outras 413 nunca participaram de oficinas gratuitas na comunidade.
Será que é só trabalhar e conseguir pagar as contas? Onde está o lazer e a cultura dentro disso?
KAMILA BAZZO
Psicóloga
— A reivindicação de mais espaços de lazer e de cultura é muito importante, porque a gente está falando da classe trabalhadora que sai de casa cedo e volta tarde, que tem afazeres domésticos e o cuidado com filhos de noite e acaba não tendo tempo disponível para sair. Aí vem os outros atravessadores, por exemplo, a questão do transporte urbano, a exploração e precarização do trabalho que fazem com que as pessoas tenham pouca renda. E então avaliamos: que tipo de qualidade de vida que a gente quer buscar? Será que é só trabalhar e conseguir pagar as contas? Onde está o lazer e a cultura dentro disso? — analisa a psicóloga Kamila Bazzo, uma das coordenadoras da Fluência.
A secretária Municipal da Cultura, Cristina Nora Calcagnotto, avalia que estudos sérios, como a pesquisa da Zona Norte, são importantes ferramentas e demonstram o poder da cultura na sociedade:
— Para nós, é importante saber que as pessoas veem na cultura e no lazer um escape para o dia a dia e que entendem da importância de ter isso em suas vidas. Por outro lado, entendemos que multiplicamos muitos recursos para pulverizar ações artísticas e culturais em toda a cidade, mas que ainda é insuficiente para o tamanho do município que temos. Vamos continuar pensando em políticas públicas para avançar, seja ela na dança, no teatro, na música, nas artes visuais, no audiovisual, no livro, leitura e literatura — pondera.
O que revela o diagnóstico
O estudo
- A pesquisa foi realizada ao longo de 2023 nos bairros Belo Horizonte, Canyon, Centenário, Colina do Sol, Fátima, Santa Fé e Vila Ipê.
- Ao todo, 732 pessoas participaram do questionário.
- As mulheres representaram a maioria das pessoas que respondeu as perguntas: foram 506 do gênero feminino e 223 do gênero masculino. Uma disse ser do gênero fluído e duas não-binárias.
Composição étnica
- 45% dos que responderam a pesquisa se identificam como brancos, enquanto 53,5% se declaram negros, pardos, amarelos ou indígenas.
Trabalho
- A maior parte dos entrevistados é assalariado, representando 338 das respostas ou 46,1%.
- 139 pessoas estavam desempregadas à época da pesquisa e 71 mantinham trabalho informal.
- 36% das famílias têm apenas uma pessoa trabalhando para o sustento da casa.

Escolaridade
- 208 dos responsáveis familiares têm Ensino Médio completo, enquanto que 144 estudaram até o último ano do Ensino Fundamental.
Responsabilidade do lar, convivência e moradia
- 27,3% das famílias são formadas por três pessoas, seguida por núcleos de quatro integrantes (22,8%).
- 277 pessoas ou 37,8% responderam que a mãe é a responsável familiar.
- 89% dos entrevistados dizem que têm uma boa convivência familiar e outros 88% responderam que fazem as refeições com familiares.
- 504 pessoas têm casa própria, representando 68,8%. Os que precisam pagar aluguel totalizam 20,9%.
- A maioria das pessoas ouvidas (31%) mora há 21 anos ou mais no bairro.
Cultura, lazer e religião
- 281 responderam que são católicos, enquanto 220 são evangélicos. Outros 111 não têm religião.
- O estilo de música predominante entre os entrevistados é o sertanejo (42,7%), seguido pelo gospel (23,2%) e pelo hip hop (14,6%). O rock, a música gaúcha e o pagode são os menos ouvidos, sendo os preferidos de 58, 41 e 21 moradores, respectivamente.
- 55,6% das pessoas responderam que ficam em casa no fim de semana; 34,9% visitam familiares; e 31,9% assistem televisão. Outras 23,7% dizem que saem com amigos e apenas 24 pessoas (ou 3,2%) vão a parques.
Transporte e demandas para a região
- Quando questionados sobre o meio de transporte utilizado para deslocar-se pela cidade, 75,5% responderam utilizar o transporte público municipal.
- Perguntados sobre os desejos para seu bairro, 22% optaram pela ampliação ou revitalização dos espaços de lazer e cultura. Melhorias no transporte público foram apontadas como prioridade para 15% dos entrevistados, mesmo percentual que escolheu mais segurança e melhoria/ampliação dos serviços de saúde.
Fonte: Diagnóstico Territorial da Zona Norte da Fluência Casa Hip Hop