Lembro de uma redação que escrevi como tema de casa: conte a sua vida. Eu tinha uns 9 anos e não sabia por onde começar. Era uma tarde de domingo, minha mãe ava roupa e me ajudava, não contando minha história, mas me fazendo perguntas, lembrando detalhes esquecidos. A proposta era uma miniautobiografia, mas me pareceu mais um “escreva o que quiser sobre sua vida”. A folha em branco me torturava, as pautas me prendiam.
Freud notou o quanto é comum o silêncio ao propor a regra da livre associação — que o paciente deve falar o que vier à mente. Também escuto com frequência: “não tenho nada para dizer hoje”. Psicanalistas apresentam várias teorias para isso. Nem sempre Freud explica; às vezes, preferimos outras leituras.
Nas aulas de sommellerie, noto olhares dos alunos desviando-se quando peço para descreverem o que sentem. Dizem não saber identificar. Mas não é ausência de sensação — algo os impede de nomear. Talvez por pensarem não ser importante, que estão errados, ou por medo de julgamento.
Mas isso não é sobre os outros. É sobre mim. Quando me sento como aluno, deito no divã ou encaro a tela em branco, o cursor piscando é o prenúncio de uma tempestade emocional que se anuncia sob uma aparente calmaria. O coração pulsa, o nariz capta aromas na taça, e cada texto, cada vinho, cada encontro é único.
Falar ou escrever a primeira palavra é inaugurar o instante. Esse é o centro do meu trabalho: ajudar as pessoas a colocarem em palavras o que sentem — na taça ou dentro de si. Sem moldá-las, sem impor meus gostos, mas abrindo espaço para que descubram os seus próprios.
Na psicanálise, seguimos a livre associação; na degustação, a atenção aos detalhes; na crônica, o meu método é flanar. Como o psicanalista que escuta sem pré-julgamentos, o cronista vagueia pela cidade até que algo o toque por dentro. A escuta afetiva preenche os silêncios urbanos. E as palavras, enfim, brotam — como flores no asfalto.