
Jaqueline da Silva — conhecida pelo nome artístico Jaque Daudi — é criadora da marca NêgaNagô, que carrega estética, representatividade e força ancestral. Filha de Antônio e Lourdes da Silva (in memoriam), Jaque cresceu entre caixas de linha, cores vibrantes e as máquinas de costura da mãe. Ainda antes de aprender a ler, já observava com fascínio o processo quase mágico de transformar tecidos em roupas. Foi nessa infância repleta de afeto e referências visuais que adquiriu o gosto para criar modelos para suas bonecas, habilidade que viria a ser a base de seu futuro.
Apesar da paixão pela moda, Jaqueline optou pela formação em Direito, incentivada a buscar um caminho tradicional com mais possibilidades profissionais. Foi assim que ela conquistou uma bolsa de estudos para o curso, nunca com a intenção de advogar, mas como forma de ar espaços que historicamente eram negados às mulheres pretas.
— O Direito me trouxe base e, de certa maneira, autoconfiança para adentrar em ambientes que não pareciam me pertencer — reflete. Jaqueline foi a segunda pessoa de sua família a concluir uma graduação.
O momento decisivo para empreender na moda afro veio ainda durante a faculdade, período em que testemunhou uma intensa imigração senegalesa em Caxias do Sul. Encantada pelas estampas e combinações de cores até então raras nas ruas da cidade, ela se identificou imediatamente: — Pensei: é assim que eu quero me vestir, é assim que eu quero que as pessoas me vejam.
Na época, o o aos tecidos africanos era limitado, então ela improvisava com carimbos e estilos únicos. Meu estilo (que contrastava com o cotidiano local) começou a chamar atenção e as pessoas aram a encomendar looks parecidos. Mesmo enfrentando resistência familiar para investir na moda, Jaqueline manteve sua dedicação paralela ao trabalho formal.
A virada veio com a doença da mãe. Já debilitada, ela reconheceu a paixão da filha e, pela primeira vez, a autorizou a fazer aulas de corte e costura, presenteando-a com suas máquinas. Três meses depois, assumiu a produção sozinha.
— Foi o momento mais difícil da minha vida, e o que mais me conectou a ela depois da sua agem — relembra com emoção.

O nome da marca, NêgaNagô, tem origens profundas. Os nagôs são oriundos de países africanos e foram o grupo étnico mais expressivo entre os escravizados trazidos ao Brasil. Suas heranças culturais, como as tranças feitas diretamente na raiz do cabelo, permanecem vivas. Foi justamente por usar esse penteado que um amigo apelidou Jaqueline de “nêga nagô” e a força e sonoridade ficaram.
— Era pra ser esse. Nunca cogitei outro nome — afirma ela, que comanda o ateliê instaurado nos domínios da Galeria Atrium.
A inspiração de Jaqueline é intuitiva e pode vir de diferentes fontes: um axó visto no terreiro, uma releitura de criações anteriores ou pesquisas em páginas especializadas em moda afro no exterior. As cores vivas, a alegria e a liberdade de movimento são elementos centrais de suas vestimentas.
— Antes de nos apresentarmos verbalmente, a nossa imagem já a uma mensagem — diz. Para ela, vestir-se de forma afrocentrada é um ato de orgulho e pertencimento, que ajuda a reconstruir a autoestima historicamente abalada. Em 2024, durante os desfiles da Festa da Uva, foi figurinista do corpo de Lanceiras Negras. O momento de se arrumarem, com turbantes e maquiagem, transformou a postura e a autopercepção das mulheres envolvidas. — Muitas relataram se sentirem mais orgulhosas e confiantes. Isso é empoderamento — expõe.
Jaqueline também é uma das fundadoras do coletivo “Rolê das Pretas”, criado com sua irmã Márcia. O grupo reúne cerca de 20 mulheres negras de diferentes profissões e histórias, promovendo apoio mútuo. O nome nasceu de encontros informais para tomar vinho e rir, mas se tornou uma rede de fortalecimento, articulação e atuação social. Ela também participa do núcleo caxiense da organização Mulheres do Brasil, que promove igualdade racial e apoia empreendedoras por meio de feiras, capacitações e canais de comercialização.
Seu maior recado para jovens negras que desejam empreender? Coragem.
— Vivemos em uma sociedade que nos faz provar o tempo todo que merecemos estar onde estamos. Isso pode nos fazer duvidar da nossa capacidade. Não duvidem. Se cerquem de pessoas que te amparem nas quedas. Trabalhem com dedicação e tenham excelência no que realizam — aconselha.
Como lema pessoal, Jaqueline Daudi filosofa: descansar quando o corpo pedir, chorar quando for preciso, mas continuar caminhando mesmo enquanto seca as lágrimas. Inspiração que vem de sua avó, Dona Sebastiana, ou Mãe Bastiana, cujo legado — mais de 30 anos após sua partida — ainda vive na força das mulheres que ela formou.
Na medida de Jaque
- A herança que quero deixar com meu trabalho é… o exemplo de que podemos mudar a nossa história, apesar de todas as dores da vida.
- Um momento inesquecível foi… ter participado do Concerto de Moda. E a oportunidade de abrir meu desfile reverenciando a orixá dona do meu orí, na figura da querida Mãe Nilza de Oxum.
- Gostaria de ter sabido antes que… saudades de mãe dói. E que deveria ter aprendido muito mais com ela.
- Meu lugar preferido no mundo é… qualquer lugar onde eu possa criar, escutando um bom samba e tomando chimarrão.
- Um filme que me inspira: A Cor Púrpura, do cineasta ganense Blitz Bazawule. Assisto religiosamente, pelo menos uma vez ao ano.