Em algumas manhãs, nadando no mar de Copacabana com os outros 15 ou 20 praticantes do seu grupo de treino, Andrea Beltrão experimenta a paz “de se sentir como parte de um cardume”.
Vão juntos, embalados pelas braçadas, mudam de direção se preciso e, quando se afastam dos mais lentos, logo retornam para encontrá-los e seguir juntos, um cuidando do outro. No mar, ela nunca nada sozinha.
— Faz uns 15 anos que nado no mar e, muitas vezes, quando estou saindo da água, penso em como seria bom que todo mundo pudesse ter um momento do seu dia para vir dar um mergulho, ter essa sensação. Dentro do mar, você não é nada – é só um peixe no cardume, indo na direção que a maioria segue: “Vamos para lá?”, “Vamos!”, “Pintou um tubarão, vamos voltar!”, “Vamos.” Esse movimento do cardume embaixo d’água é uma coisa linda. Por alguns segundos, é um exemplo de como a vida poderia ser — reflete a atriz.
A paz e a calmaria desse trecho da rotina da carioca contrastam com a verdadeira tormenta que ela traz ao palco do teatro atualmente.
Em Lady Tempestade, monólogo que chega a Porto Alegre para quatro apresentações entre 1º e 4 de maio, Andrea interpreta A., uma mulher que recebe os diários de Mércia Albuquerque (1934-2003), pernambucana considerada a maior advogada nordestina de presos políticos da ditadura militar de 1964.
A obra, dirigida por Yara de Novaes, integra um momento simbólico para a capital gaúcha, pois faz parte da programação de inauguração do Teatro Simões Lopes Neto, no Multipalco Eva Sopher.
— É um prestígio muito grande fazer parte desse momento da cidade, que já tem o Theatro São Pedro, que é incrível. Tive a oportunidade de estar aí e encontrar a dona Eva Sopher algumas vezes. Conheci o teatro não só como equipamento cultural, mas pelo perfil que a dona Eva sempre deu, pelo cuidado com tudo, pela curadoria que ela fazia. Então é muito especial — celebra Andrea.
Aos 61 anos, Andrea segue reafirmando seu talento com escolhas que misturam comédia e drama – da série adolescente Armação Ilimitada à premiada peça Antígona, ando pelas hilárias Marilda, de A Grande Família, e Sueli, de Tapas e Beijos — ou Slaps and Kisses, como apareceu traduzido para o inglês durante a transmissão do Globo de Ouro, no dia histórico em que Fernanda Torres ganhou o prêmio de melhor atriz em filme de drama por Ainda Estou Aqui.
Num momento agudo de crise, a gente se transforma um pouco no resultado do ambiente em que estamos vivendo, somos empurrados pelas coisas. Somos fruto do que o tsunami da vida faz com a gente em cada momento
ANDREA BELTRÃO
Atriz
Por coincidência, as duas artistas que compam a incrível dupla Fátima e Sueli na série da TV Globo, exibida entre 2011 e 2015, agora estão trazendo para o cinema e o teatro narrativas baseadas em histórias reais de mulheres que, cada uma a seu modo, lutaram contra um sistema opressor.
— É importante falar sobre essas histórias porque elas não foram resolvidas. A Fernanda está contando as histórias de Eunice Paiva, eu conto as de Mércia Albuquerque e muitas outras intérpretes seguem contando outras histórias — mas sob esse viés que não é somente um grito, e sim um chamado para uma escuta, para uma conversa mais horizontal — confia Andrea.
Casada com o diretor Maurício Farias e mãe de três filhos, Andrea vive um momento especial: embora seja um monólogo, Lady Tempestade conta com a presença em cena de seu filho mais velho, Chico Beltrão, que assina a trilha sonora do espetáculo.
Em entrevista exclusiva a Donna, Andrea fala sobre essa experiência nova, a agem do tempo e o mergulho literal e simbólico que a natação representa na sua vida.
Confira a entrevista com Andrea Beltrão
É a primeira vez que você e Chico estão trabalhando juntos em uma peça?
Sim, é a primeira vez. A Yara de Novaes gostou do trabalho dele como produtor musical e o chamou para fazer a trilha. Só que a gente começou a ensaiar e, de repente, ela decidiu que ele, apesar de não ser ator, faria a peça comigo. Yara já sabia que a peça trataria sobre mães, pais e seus filhos e filhas – as ausências, os desaparecimentos, as faltas de convívio, os exílios forçados.
E para ela ficou muito forte a minha imagem com o meu filho, contando essas histórias de mães que procuram desesperadamente por seus filhos ou tentam resgatá-los de uma força impossível. Se não houvesse a presença do Francisco, a ausência desses filhos ficaria mais inável para a contação dessa história, porque o fato de o Francisco estar ali significa que, mesmo não estando, todos os filhos estão aqui também.
O que esta experiência com Lady Tempestade te faz sentir?
Sou de 1963, portanto era criança durante a ditadura no Brasil, mas na minha família esse assunto chegou muito forte. E, a essa altura do campeonato, se eu não soubesse o que aconteceu com o nosso país, seria uma pessoa bastante alienada.
Mas o interessante nisso é contar a história de uma mulher sobre a qual eu não sabia nada. Nunca tinha ouvido falar na Mércia Albuquerque e, no entanto, ela foi alguém que teve uma participação muito efetiva e combativa em seu estado e cidade.