O Estado brasileiro deve garantir o a políticas de prevenção, proteção e e à violência e ao abuso sexual. A gravidez em vítimas de estupro, sobretudo crianças, exige uma abordagem sensível e baseada em direitos para que os efeitos possam ser minimizados e que lhes sejam garantidas a chance de uma vida digna. Como instituição estratégica do Estado brasileiro para o fortalecimento do SUS, da democracia e das políticas de saúde pública, a Fiocruz posiciona-se de forma contrária à proposta trazida pelo PL 1904 e soma-se à mobilização da sociedade para a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
A violência sexual e de gênero configuram um grande problema de saúde pública no país. Estima-se que ocorram 820 mil casos de estupro por ano, sendo 80% de mulheres e apenas 4% detectados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em relação aos agressores, destacam-se quatro grupos principais: parceiros e ex-parceiros, familiares (sem incluir as relações entre parceiros), amigos(as)/conhecidos(as) e desconhecidos(as). A maior parte das vítimas detectadas estão na faixa etária de 11 a 20 anos, seguida do grupo de 0 a 10 anos (Ipea, 2023). Destaca-se nas notificações de violência sexual no SUS que as maiores vítimas são crianças e adolescentes negras, o que nos faz refletir sobre a maior vulnerabilidade desse grupo e sobre as interseccionalidades entre gênero e raça que expõe nossas meninas a esse tipo de violência que, muitas vezes, tem como consequência uma gravidez (Brasil, 2024).
A gravidez resultante de estupro é uma tragédia social de grande impacto na saúde física e mental, assim como na vida de estudo, laboral e de lazer, especialmente quando a vítima é uma criança. Meninas podem não saber que estão sendo violentadas e que esta violência sexual pode provocar uma gestação. Sintomas do gestar não fazem parte do universo simbólico de crianças, que podem ter dificuldades em identificá-los. Dados sobre violência sexual provenientes da saúde e da segurança pública são unânimes em apontar a prevalência da vitimização por familiares e pessoas conhecidas, ou seja, os abusadores são pais, padrastos, tios, avôs, o que dificulta a revelação de uma violência, o pedido de ajuda e o próprio entendimento sobre a gravidez, além de deixar as vítimas mais expostas à violência psicológica. Muitas vezes há o receio de procurarem o serviço de saúde, pois a gestação em virtude do estupro impacta as mulheres e meninas de diferentes maneiras, incluindo a vergonha e o medo.
No Brasil, o estupro é uma das únicas situações que permitem a interrupção legal da gravidez, em conjunto com o risco de morte de quem gesta e a anencefalia fetal. Nesses casos, não há previsão de limite de idade gestacional para o procedimento, que deve ser ofertado pelo SUS em serviços especializados e credenciados. Mesmo o abortamento sendo permitido nesses casos, a garantia desse direito ainda está muito aquém do desejado. São poucos os serviços de saúde especializados que estão preparados para o procedimento e os vazios assistenciais são gigantescos.
Estudo com dados de 2019 identificou que os estabelecimentos de saúde com registro de aborto por razões médicas e legais e do tipo Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez em Casos Previstos em Lei, estavam presentes em apenas 3,6% (200) dos municípios brasileiros. A maioria dos estabelecimentos estava localizado em municípios da Região Sudeste (40,5%) (Jacobs, 2021). Mesmo em serviços credenciados para realizar o procedimento, tem-se a dificuldade de os profissionais médicos aceitarem realizar por objeção de consciência, ainda que o estabelecimento de saúde, uma vez cadastrado, deva garantir a existência de profissionais que o façam.
Dessa forma, a proposta trazida pelo PL 1904, de limitar a idade gestacional para o abortamento legal em 22 semanas, limita o o a esse direito, na medida em que a identificação da gravidez em vários casos é demorada. O fato dessa vítima ser impedida legalmente de realizar um aborto traz consequências psicológicas que podem ser duradouras e, se tratando de crianças, trazer consequências físicas que incluem a possibilidade de óbito. O PL representa, portanto, mais uma falha na proteção integral, assim como estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, cuja responsabilidade é, inicialmente, da família, mas também do Estado e da sociedade.
Nesse sentido, a Fiocruz vem reafirmar seu compromisso em defesa do o a políticas de saúde pública para todos e dos direitos reprodutivos da mulher assumidos pelo governo brasileiro (Brasil, 2005) e definidos em Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1994.
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