Dona Cleci Ribeiro, sua filha Rosângela Ribeiro e a gatinha Frida

Rosângela também viu a água cada vez mais perto. Mandou Cleci pegar documentos e a gata Frida e sair a pé, enquanto era tempo, e correu até a prefeitura pedindo socorro de uma caçamba para levar os móveis. Mais tarde, encarapitada na traseira do caminhão, cruzou pela mãe zanzando desnorteada pelos arredores, os pés n’água e Frida no colo.

No casarão de 206 metros quadrados que herdou do pai, Elisabete e mãe pegaram alguns biscoitos e refugiram-se no segundo piso, onde estariam a salvo de qualquer enchente. Intranquilas, mas esperançosas, deitaram-se. 

Em menos de uma hora, por volta das cinco da tarde, o Taquari ganhou novo relevo. Com velocidade surpreendente, o rio assomou às ruas, alcançando a cintura das pessoas. Já em desespero, Antônio viu uma correria e pediu ajuda. Um vizinho pegou Vitória nas costas e ele e a mulher correram para o único ponto seco: a garagem da casa de Emerson e Camila, onde já havia um grupo de pessoas. Na esquina, a anciã da rua, Dona Ana, de 91 anos, se agarrou ao sofá e teve que ser arrastada pelo sobrinho porque resistia a abandonar o lar. 

Transformado em altar da salvação para 34 pessoas, 18 delas mulheres e crianças, a rampa da garagem de Emerson também começou a inundar. Não restava alternativa. Aos pontapés, os homens pedalaram a porta e buscaram abrigo no segundo andar da residência.     

Assentado sobre um vale e alimentado pela água que descia vertiginosamente das nascentes espalhadas pelo norte e pela serra do Rio Grande do Sul, o Taquari estourou sua cota em 10 metros. Na ponta leste de Muçum, a correnteza não venceu a curva sinuosa à esquerda que ladeia a Avenida Nossa Senhora de Fátima e o rio formou um novo curso, invadindo a cidade. A vegetação costeira foi arrancada do solo, prédios inteiros foram ao chão. Silos graneleiros ficaram retorcidos como se feitos de arame. 

Dos 14 pilares de concreto erguidos para sustentar a cobertura da Praça Cristóvão Colombo, metade pendeu para o lado, comprometendo a construção. Carros, casas, árvores e contêineres foram arrastados. No alto dos postes que restaram em pé, a fiação elétrica se tornou varal da imundície, amparando os detritos espalhados pela corrente d'água.

Eram seis da tarde quando Lucas Horn acordou e viu um oceano de lama cruzando em frente à sacada do apartamento, no terceiro andar. A rede de energia elétrica havia colapsado e, de repente, uma casa se desprendeu do outro lado da rua e veio em direção a ele, ruidosa como um trator lavrando pedras. Ao chegar no meio da via, a correnteza fez o prédio dar uma rabeada, jogando-o contra um poste. Houve estouro e faisqueira, num sinal de que Lucas precisava fazer alguma coisa. Ele pedia socorro aos colegas dos bombeiros voluntários quando, às 21h34min, o sinal de celular e de internet desapareceu.     

Abrigada no salão paroquial, no centro, Cleci e Rosângela perceberam que ali também a água começava a chegar. Levantaram os poucos móveis que haviam salvado, juntaram algumas peças de roupas, documentos e saíram em meio à escuridão. Àquela altura, só havia um destino possível: a Igreja Nossa Senhora da Purificação. 

Erguido em 1913, o templo já estava tomado por sobreviventes em busca de refúgio. Cleci, Rosângela, o irmão Rogério e o marido Pedro se acomodaram num canto, sob uma estátua de dois metros do Cristo Crucificado. Puxaram o tapete que amparava a imagem para usar como colchão e, com culpa cristã, usaram os panos do altar como coberta. 

 — Senhor, me perdoa  — pediu Rosângela.

Longe dali, em meio ao lamaçal que cobria o centro, Elisabete estava deitada sobre a cama quando ouviu um apelo da mãe no quarto ao lado. Ao botar os pés no chão, mergulhou os tornozelos na água. Assustada, Zilda pedia que a filha a pegasse pela mão. Agarradas, rezaram no escuro com a mesma ênfase com que o segundo piso era invadido pelo rio. 

Jefferson Botega / Agencia RBS
Elisabete Simonaio perdeu a mãe na tragédia

Elisabete já não sabia onde se segurar quando um sofá surgiu flutuando. Ela colocou a mãe sobre o móvel e se apoiou no braço do sofá, torcendo para que o guarda-roupa de seis portas no canto da peça não tombasse sobre elas. Por um instante, a mãe resvalou, o corpo inteiro mergulhando na água fria. Elisabete ergueu Zilda de volta.

— Mãe, tu me escuta? Mãe, tu tá bem?  — perguntava em desespero.

Zilda Simonaio nunca mais respondeu. Por toda a noite e madrugada, Elisabete ficou agarrada ao sofá, com água pelo peito e sem conseguir encostar os pés no chão, sem soltar momento algum a mão da mãe morta ao seu lado. 

Jefferson Botega / Agencia RBS
André Marcon, do Hospital Nossa Senhora Aparecida: local abrigou 50 idosos das duas casas geriátricas da cidade

Por toda a cidade, ecoavam gritos de desespero, com as pessoas implorando socorro. Os latidos cessaram, pois boa parte dos cães sucumbiu arrastada pela correnteza. Único local com luz, o Hospital Nossa Senhora Aparecida se tornou uma ilha de segurança em meio ao caos, abrigando 50 idosos das duas casas geriátricas da cidade. Dois enfermeiros, dois médicos e cinco técnicos em enfermagem aram a noite recebendo sobreviventes, mas não havia cortes ou fraturas a medicar — o diagnóstico era de pânico generalizado.

Isolado na sala do apartamento, Lucas planejou uma fuga pelo alto. Amarrou duas caixas de isopor com cordas elásticas, fez um amparo com ripas de madeira e prendeu a jangada improvisada ao cinto. Colocou o lhasa apso Thor em uma mochila atravessada ao tórax e subiu no parapeito da janela da área de serviço. A 10 metros de altura do chão e a dois do teto, escalou a parede e subiu ao topo do prédio. Ficou ali, sob vento e chuva, abraçado ao amigo canino, até as 3h30min da madrugada. Ao ver a água começando a baixar, retornou ao apartamento. Tudo estava destruído, mas ambos estavam vivos. 


Jefferson Botega / Agencia RBS
Lucas Horn e seu cãozinho Thor

Quando amanheceu, a destruição se revelou por inteira. Muçum, que vivia um boom de turismo a partir de eios de trem pelo vale, estava revirada do avesso. Houve relatos de saques, e Emerson Ulmi foi avisado de que sua casa havia sido invadida e os móveis estavam sendo levados. Armado com duas facas e um cabo de vassoura, ele correu até o sobrado. 

—Tem alguém aí? Tem alguém aí? Sai que essa casa tem dono— alertou ao chegar na porta.

Emerson demorou alguns segundos para processar o que via: a geladeira havia sido carregada para o segundo piso, onde agora também estava a lava-roupas recém comprada. Só ao enxergar Dona Ana, a anciã de 91 anos da Marechal Floriano, ele entendeu que os invasores eram os vizinhos e o suposto saque era proteção. Emerson sentou-se na escada e desabou em lágrimas. 

Jefferson Botega / Agencia RBS
Pedro Alexandre Venâncio, Janaína Buffet e os vizinhos que se abraçam para dar força um ao outro

Duzentos metros adiante, o choro era de natureza trágica. Sozinha e desolada, Elisabete sentou diante da casa destruída, sem saber a quem recorrer. O corpo da mãe continuava no quarto, sobre o sofá. Zilda só foi resgatada depois das 15h, quase ao mesmo instante em que o governador Eduardo Leite chegava em Lajeado para vistoriar os estragos da enchente. 

Ao descer do helicóptero, Leite foi avisado pelo chefe da Casa Militar, coronel Luciano Boeira, de que 15 corpos haviam sido encontrados em Muçum, transformando o 4 de setembro de 2023 na mais letal tragédia climática dos últimos 40 anos no Rio Grande do Sul. 

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