Cinderela
E o meu príncipe encantado
Vai chegar

— Ai, que horror — diz, baixinho, Nair Teresinha.

Não é uma reprovação à performance da colega, mas uma recusa à ideia de esperar pelo homem que finalmente vai surgir para completar a vida de uma mulher.

Isabel fustiga as alunas.

— Temos muitas mulheres cantando e muitos homens compondo. E isso instaura uma visão de mundo masculina na música, o que invalida a visão da mulher. A gente precisa encontrar nosso jeito de compor e se acostumar com o estranhamento que isso causa — diz ela, que também é produtora e compositora.

Fala que é importante que a mulheres escrevam todos os dias. Que encontrem tempo para colocar as palavras no papel, que façam disso um compromisso. Se necessário, que olhem para a lista do supermercado e imagem uma canção.

— Três quilos de farinhaaa/ Três quilos de sabããão — canta Charlise Bandeira, arrancando risadas.

Camila Hermes / Agencia RBS
Junção: todas as participantes da segunda edição do Peitaço da Composição durante oficina de criação de canções

Poucas entre muitos

Munidas de papel, caneta, violão e bombo leguero, elas se espalham pelo acampamento para finalizar as canções que serão apresentadas no espetáculo. Se quiserem, poderão inscrever essas músicas nos festivais que dão prêmios, como a Califórnia da Canção, a Coxilha Nativista e o Carijo da Canção Gaúcha, embora saibam que as chances de serem selecionadas são baixas. Existem barreiras para isso: sua visão de mundo foge do padrão desses eventos tradicionais, nos quais grande parte das composições fala sobre campo e gado.

— Não tem a ver com a nossa capacidade. O problema é que essas músicas incríveis que estamos criando não entram nos festivais, não têm o padrão dos festivais, que são focados no universo campeiro, na lida campeira — diz Clarissa Ferreira, também pesquisadora e autora do livro Gauchismo Líquido: Reflexões Contemporâneas sobre a Cultura do Rio Grande do Sul (2022).

Para Charlise Bandeira, uma das únicas instrumentistas mulheres a participar dos festivais, as letras escritas por elas acabam gerando estranheza aos ouvidos de uma maioria masculina:

— Os avaliadores desses festivais são, na maioria, homens, e eles não entendem a escrita da mulher. E aí nossa música não a. Além do mais, os autores de composições não chamam as mulheres para interpretar suas músicas. Acham que a composição é muito campeira para uma mulher cantar.

Primeira cantora solo a participar da Califórnia da Canção, em 1971, Nair Teresinha é a prova da revolução que o Peitaço pretende causar: só foi compor uma música quase 50 anos após entrar para a história da música regionalista local. Agora, deseja lançar seu trabalho nas plataformas digitais.

Camila Hermes / Agencia RBS
Produtora musical Bianca Rhoden durante a oficina de criação de canções

— Eu era simplesmente uma intérprete. Foi a partir do primeiro Peitaço que consegui fazer  minhas músicas. Fiz algumas durante a pandemia, mas não lancei. Tenho vontade de lançar em plataformas digitais. Festivais são complicados, só selecionam quem compõe há anos. Não dá para ficar esperando até que alguém decida dar uma chance para a gente subir no palco com nossa música — afirma.

Na derradeira apresentação de sábado à noite, finalmente ouvem-se as composições. Elas tiveram de se nortear pelos temas que foram dados a cada grupo no dia anterior, palavras que remetem ao ado do Rio Grande do Sul e à vida no campo, como “guerra”, “raízes” e “bandeira”, e outras que convidam a expressarem emoções, como “lua”, “tristeza”, “ternura”.

Não se ouvem músicas que versam sobre os filhos, o amor, o homem que vai chegar. São canções que falam delas, de quem são, do que sentem, de quem desejam se tornar. Algumas invocando a ancestralidade, como Filhas da Terra, com letra de Adriana Sperandir, Lizzi Barbosa, Loma Pereira, Márcia Freitas e Nair Teresinha:

Açorianas, rendeiras
Filhas da terra, parteiras
Herdeiras da ginga, rainhas
Magias de benzedeira

Algumas mais comportadas, como Soneto de Alma e Lua, com letra de Fátima Gimenez, Laura Guarany, Bianca Flores e Anne Augusta:

Sou uma mulher
gaúcha e latina
Minha voz é um instrumento
de minh’alma feminina

Outras mais debochadas, como Abya Yala, com letra de Clarissa Ferreira, Ana Matielo
e Brenda Billmann, que expande a figura da mulher para além da idealizada no cancioneiro gaúcho.

Pachamama
Abyayala
As bruxa veia
e as viada
as cadela e as vacas
chinaredo de alpargata

Ao fim do espetáculo, já se veem várias garrafas de vinho vazias ao chão. Shana vai de um lado a outro do galpão certificando-se de que tudo corre bem. Ora toma goles de cerveja em uma long neck, ora pega no colo a filha Mercedes, de um ano. Sobe no palco, já vazio, e desenrola duas chapas de metal diante da plateia. Em uma das placas estão gravados os nomes das mulheres que participaram da primeira edição do Peitaço e que ajudaram o festival a entrar para a história.

A outra chapa presta uma homenagem à pioneira Berenice Azambuja, morta em 2021, e à
madrinha da festa, Oristela Alves. Shana fala da edição de ano que vem. A mulherada aplaude, grita, dá uivos. Só que as placas, explica ela, infelizmente terão de ser penduradas em outro momento.

— É que a gente esqueceu os pregos.

A relação das músicas apresentadas no 2º Peitaço da Composição

Camila Hermes / Agencia RBS

À Beira do Abismo - Letra: Bianca Bergmam e Fernanda Irala. Melodia: Aline Ribas e Bianca Bergmam. Intérpretes: Maria Alice e Bibiana Alves

Abya Yala - Clarissa Ferreira, Ana Matielo, Brenda Billmann, Marília Kosby, Pyetra Hermes, Isabel Nogueira, Paola Mattos, Luiza Gomes, Bibiana Alves

Filha da Terra - Letra e melodia: Adriana Sperandir, Lizzi Barbosa, Loma, Márcia Freitas e Nair Teresinha

Por Fim - Rita Mauch, Maria Helena Anversa, Eunice Pohlmann, Charlise Bandeira

Saudação, Minha Irmã - Susane Paz, Bárbara de Bittencourt, Charlise Bandeira

Soneto de Alma e Lua - Fátima Gimenez, Bianca Flores, Anne Augusta, Laura Guarany, Clarissa Simões Pires. Intérpretes: Fátima Gimenez, Cristina Sorrentino e Maria Alice

Transgrido Tudo - Bianca Rhoden, Shana Müller, Rô Orlandi, Raquel de Borba, Amanda Hausen, Maria Rita Dias

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