
Este 2018 foi um ano difícil para o mercado livreiro, e os sinais da crise no setor se alinharam numa sucessão vertiginosa que mais parecem lances de suspense em um thriller sombrio. Já no primeiro trimestre do ano, uma das redes com maior presença nos aeroportos do Brasil, a LaSelva, finalmente fechou todas as suas lojas após cinco anos de lenta agonia – a empresa havia pedido recuperação judicial em 2013 e promoveu uma onda gigante de demissões em 2014. Em março deste ano, veio o golpe final: o decreto de falência emitido pela Justiça.
Em setembro, novo sinal de que as coisas não andavam bem: pouco mais de um ano após comprar as operações da Fnac no Brasil, incluindo 12 lojas, a Livraria Cultura anunciou o fechamento de todos os pontos que havia herdado da rede sa – incluindo o que funcionava em Porto Alegre, no BarraShoppingSul.
Em outubro, a mesma Cultura, que em 2017 se expandia comprando não apenas a Fnac mas o guia online de sebos Estante Virtual, entrou com um pedido de recuperação judicial para tentar regularizar uma massa de dívidas de quase R$ 285 milhões – que incluem R$ 92 milhões devidos a fornecedores, R$ 65 milhões aos bancos e R$ 25 milhões em aluguéis e fornecedores indiretos. Reportagem publicada no jornal Valor Econômico revelou que a empresa vinha atrasando consistentemente pagamentos a editoras desde 2016.
No mesmo mês, a maior rede de livrarias do Brasil, a Saraiva, anunciou a decisão de fechar 20 unidades dentre as 85 que mantém espalhadas pelo país. Em novembro, foi a vez de ela própria pedir recuperação judicial para lidar com uma dívida de R$ 675 milhões.
Os pedidos de recuperação judicial estancam novos endividamentos e pedidos de falência, mas também congelam, por enquanto, o pagamento a funcionários e fornecedores. Para se recuperarem, ambas as empresas precisam ainda, ao longo do processo, realizar cortes profundos de pessoal e fechar mais unidades, o que terá um impacto na economia brasileira em crise como um todo.
Os percalços de duas das maiores empresas do setor, que representam, juntas, 40% do varejo livreiro, também produziram uma série de reações, algumas propondo paliativos imediatos. O editor da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, lançou uma carta aberta de amor aos livros, analisando as dificuldades do mercado.
"O livro no Brasil vive seus dias mais difíceis. Nas últimas semanas, as duas principais cadeias de lojas do país entraram em recuperação judicial, deixando um ivo enorme de pagamentos em suspenso. Mesmo com medidas sérias de gestão, elas podem ter dificuldades consideráveis de solução a médio prazo. O efeito cascata dessa crise é ainda incalculável, mas já assustador", escreveu Schwarcz, que pediu socorro ao público sugerindo que os livros fossem privilegiados como alternativas de presentes de Natal.
Estamos vendo o ponto culminante de um processo que já vem de no mínimo uns 10 anos. O mercado livreiro está registrando mudanças de todo tipo, e a capacidade de resposta das organizações maiores é demorada. Livrarias pequenas e médias atendidas pelo dono podem tomar decisões e pô-las em prática mais rápido."
BERNARDO GURBANOV
Presidente da Associação Nacional das Livrarias (ANL)
A ideia de Schwarcz não é a única iniciativa. Várias outras têm tomado corpo nas redes sociais e associações de classe do mercado livreiro. A Associação Nacional de Livrarias, em parceria com as redes Leitura, Cultura, da Vila, Curitiba e as próprias Saraiva e Cultura, lançou a campanha #Vempralivraria, com a criação de hashtags para os leitores adicionarem aos seus avatares, artes para compartilhamento em redes sociais e ações planejadas de interações nas livrarias.
– A comunhão entre o leitor, a livraria e o livro é a dose exata para o sucesso. A promoção do gosto pela leitura não é somente uma questão técnica, ela deve estar acompanhada de emoção e afeto – aponta Bernardo Gurbanov, presidente da Associação Nacional das Livrarias (ANL), consultor editorial e proprietário da livraria Letraviva.
Nem todas as campanhas se direcionam para a salvação das megalivrarias. Muitos leitores, lembrando o papel que as próprias redes tiveram no fechamento de um grande número de lojas de calçada, lançaram nas redes outros tipos de manifesto – desde comprar direto da editora até privilegiar livrarias menores em detrimento das grandes atualmente com pagamentos suspensos aos fornecedores.
A maioria das reações, entretanto, é de perplexidade. E fica a pergunta: como chegamos até aqui? Como sempre em casos dessa natureza, a explicação não se encerra em um único fator – a por um esgotamento geral do modelo, pelo aperto generalizado do setor em tempos de crise econômica, pelo aumento da concorrência, inclusive a da agressiva gigante Amazon, e pelo próprio método de comercialização do livro, da fixação de seus preços até seu hegemônico sistema de consignação.
Seguem alguns desses elementos:
A CRISE DAS MEGASTORES
O modelo de "megastores", lojas com acervo mastodôntico e grande diversidade de produtos – não se limitando apenas ao livro, mas a discos, colecionáveis, brinquedos e um amplo catálogo de itens eletroeletrônicos e até de vestuário –, nasceu na França, com a Fnac, e se consolidou a partir dos anos 1970. Foi transplantado para o Brasil pela Saraiva, que abriu em 1996 suas duas primeiras "mega", nos shoppings Eldorado e Ibirapuera, em São Paulo. Desde então, o modelo se ampliou e se naturalizou de tal modo que raro era o novo shopping construído no Brasil nos últimos 30 anos que não tivesse em seus planos uma megalivraria.
Há uma crise internacional desse modelo de megastores em toda parte e em vários setores, até mesmo no vestuário. A Sears, por exemplo, maior rede varejista do mundo e a primeira a aplicar esse modelo de "vender de tudo" , pediu concordata neste ano. Ou seja, é o modelo que está tendo problemas
LUÍS ANTONIO TORELLI
Presidente da Câmara Brasileira do Livro
Dominantes a partir dos anos 1990, as megas se impam ao mercado seduzindo o consumidor e pressionando a cadeia do livro. Para o comprador, o gigantismo de cada uma das lojas representava, teoricamente, uma possibilidade maior de encontrar o que procurava. Por outro lado, como encomendavam das fornecedoras grandes quantidades de produtos a cada atualização de estoque, as megas podiam exigir que as editoras oferecessem descontos maiores daqueles praticados nas menores livrarias de calçada. Isso provocou, em um primeiro momento, o dramático fechamento de lojas menores, algumas delas tradicionais – situação encenada na comédia romântica Mensagem para Você, de 1999, dirigida por Nora Ephron, com Meg Ryan como a dona de uma pequena livraria que se aproximava do gerente de uma megastore que abria na mesma rua (personagem de Tom Hanks).
Agora, há sinais de que o jogo mudou. Embora tenham um poder de negociação e de barateamento superiores, as megas também têm despesas crescentes. O modelo, no mundo todo, dá sinais de falência.
– Há uma crise internacional desse modelo de megastores em toda parte e em vários setores, até mesmo no vestuário. A Sears, por exemplo, maior rede varejista do mundo e a primeira a aplicar esse modelo de "vender de tudo" , pediu concordata neste ano. Ou seja, é o modelo que está tendo problemas – avalia Luís Antonio Torelli, presidente da Câmara Brasileira do Livro (CBL).
Um dos fatores da crise das megastores é a emergência agressiva do e-commerce, com iniciativas que permitiram cortar ainda mais custos e, portanto, vender mais barato. Por ironia, o que era sua vantagem, o gigantismo, agora é o que está dificultando sua reação.
Acredito que há uma crise quanto ao modelo superdimensionado das grandes redes. Não devemos esquecer que existem redes de livrarias que vão muito bem, obrigado, como as Livrarias Curitiba, Livrarias Travessa no Rio de Janeiro e a Leitura, no Sudeste e no Norte. A Leitura já é uma grande rede. E existem várias pequenas redes que estão muito bem, pois são bem gerenciadas."
IVAN PINHEIRO MACHADO
Editor da L&PM
– Estamos vendo o ponto culminante de um processo que já vem de no mínimo uns 10 anos. O mercado livreiro está registrando mudanças de todo tipo, e a capacidade de resposta das organizações maiores é demorada. Livrarias pequenas e médias atendidas pelo dono podem tomar decisões e pô-las em prática mais rápido. E uma série de pressões cada vez maiores, como as do setor imobiliário ou a dificuldade de negociação com os bancos, criaram problemas. O modelo adotado pelas grandes redes, e que foi grande sucesso a partir da metade dos anos 1980 até a primeira década deste século, gera hoje dificuldades de istração que exigem ajustes imediatos – analisa Bernardo Gurbanov.
Mas as recentes dificuldades das duas maiores redes, embora sinalizem o desgaste do modelo, não apontam necessariamente para um apocalipse. Pode haver uma reacomodação das forças de mercado. A rede mineira Leitura, com 70 unidades no país, anunciou que está em negociações para comprar cinco lojas que pertenciam à própria Saraiva. A Travessa, rede carioca com nove unidades, duas delas em São Paulo, também revelou planos de abrir duas novas lojas: uma em Lisboa e outra em SP.
– Acredito que há uma crise quanto ao modelo superdimensionado das grandes redes. Não devemos esquecer que existem redes de livrarias que vão muito bem, obrigado, como as Livrarias Curitiba, Livrarias Travessa no Rio de Janeiro e a Leitura, no Sudeste e no Norte. A Leitura já é uma grande rede. E existem várias pequenas redes que estão muito bem, pois são bem gerenciadas – avalia o editor Ivan Pinheiro Machado, fundador da L&PM.

O MERCADO E A INFLAÇÃO
Por ironia, a recuperação judicial das duas maiores redes se dá justamente em um ano que havia registrado tímida recuperação de uma crise que está instalada no Brasil há anos.
– A gente vem de um processo em que as livrarias deram um tiro no pé no final de 2009, embarcando numa guerra de preços. Foi o momento em que alguém achou que vender livros com descontos acima do razoável seria uma forma de vender mais livros. Desconheço um setor que trabalhe dessa forma e que tenha dado resultado. A prova mais cabal disso é que, em pesquisa recente que fizemos, foi registrada uma redução de mercado de 21%, o equivalente a R$ 1,4 bilhão, ao longo dos últimos 10 anos – diz Luís Antonio Torelli, presidente da Câmara Brasileira do Livro.